Um dos maiores escândalos de abuso infantil da história da França chega ao tribunal este mês. O ex-cirurgião Joel Le Scouarnec, de 73 anos, responderá por acusações de agressão sexual e estupro contra 299 crianças, muitas delas ex-pacientes, entre 1989 e 2014. O julgamento ocorre em Vannes, no noroeste do país, e lança luz sobre uma série de falhas institucionais que permitiram que o médico continuasse exercendo sua profissão apesar dos alertas e suspeitas.
Le Scouarnec admitiu parte dos crimes, mas nega algumas das acusações. A investigação revelou que ele mantinha diários detalhados descrevendo os abusos, além de armazenar mais de 300 mil imagens de pornografia infantil e bonecas sexualizadas do tamanho de crianças. Os cadernos continham descrições explícitas dos atos cometidos, bem como nomes de vítimas, muitas das quais sequer tinham consciência do que havia acontecido com elas, pois estavam sob efeito de anestesia.
O caso escancarou graves omissões das autoridades e da própria comunidade médica. Em 2005, o FBI alertou a polícia francesa de que Le Scouarnec acessava sites de abuso infantil, mas ele recebeu apenas uma pena suspensa. Mesmo com suspeitas levantadas por colegas de trabalho, nenhuma providência efetiva foi tomada. Um episódio emblemático ocorreu em 2006, quando um médico solicitou que a associação regional de medicina investigasse o cirurgião, mas a maioria dos membros votou a favor da sua permanência na profissão.
A inércia das instituições fez com que Le Scouarnec continuasse exercendo sua função por mais uma década, operando crianças e realizando acompanhamentos pós-operatórios sem qualquer restrição. Relatos apontam que seus abusos ocorriam dentro de hospitais e clínicas, muitas vezes sob o pretexto de exames médicos de rotina. Alguns pacientes, agora adultos, lembram-se de toques inapropriados, mas a grande maioria apenas tomou conhecimento do abuso ao serem contatados pela polícia durante a investigação.
A revelação do caso provocou um impacto devastador nas vítimas e suas famílias. Muitos relataram ter vivido com traumas inexplicáveis ao longo da vida, apenas para descobrir agora a raiz desses problemas. Algumas pessoas desenvolveram sintomas psicológicos severos, e duas das vítimas acabaram tirando a própria vida após serem informadas do que havia acontecido na infância.
Marie, uma das sobreviventes, contou que as lembranças reprimidas do abuso voltaram instantaneamente ao ver seu nome registrado nos diários de Le Scouarnec. “Tive flashbacks de alguém entrando no meu quarto do hospital, levantando os lençóis e dizendo que ia verificar se tudo estava bem”, disse ela à imprensa francesa. “Ele me estuprou.”
O julgamento também levanta questionamentos sobre o silêncio dentro da própria família do acusado. Há indícios de que parentes estavam cientes do comportamento predatório de Le Scouarnec desde a década de 1980, mas nada fizeram para impedi-lo. “A omertà (código de silêncio) dentro da família permitiu que os abusos continuassem por décadas”, disse um advogado envolvido no caso.
O ex-cirurgião está preso desde 2017, quando uma menina de seis anos denunciou os abusos aos pais, levando à sua detenção e posterior condenação a 15 anos de prisão. Entretanto, os novos desdobramentos ampliaram a gravidade do caso, tornando este julgamento um marco histórico no combate à impunidade para crimes sexuais contra menores na França.
Com um total de 299 supostas vítimas, Le Scouarnec enfrenta mais de 100 acusações de estupro e 150 de agressão sexual. Muitas das vítimas agora esperam que a justiça finalmente seja feita, não apenas contra o ex-cirurgião, mas também contra um sistema que falhou em protegê-las.
A audiência, que começa em 24 de fevereiro e deve durar até junho, será realizada em um espaço especialmente preparado para acomodar centenas de vítimas e seus representantes legais. A permissão para que a imprensa e o público acompanhem o caso depende de decisão das próprias vítimas, que têm o direito de solicitar que o julgamento ocorra a portas fechadas.
Advogados de vítimas esperam que o julgamento sirva não apenas para condenar Le Scouarnec, mas também para expor os erros institucionais que permitiram que ele continuasse abusando de crianças por tantos anos. “Este processo é um momento de acerto de contas com as autoridades que falharam com essas crianças”, afirmou Frederic Benoist, advogado do grupo de defesa infantil La Voix de L’Enfant.
A expectativa é que, ao fim do julgamento, a França possa aprender com esse caso e adotar medidas mais rígidas para prevenir que crimes semelhantes ocorram no futuro. Para as vítimas, no entanto, o trauma e a dor ainda são uma realidade presente, e o julgamento representa um primeiro passo em busca de justiça e reconhecimento.
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